8 de julho de 2009

Fascínio

Colonia del Sacramento

Aqui nesse lugar de ruas largas com portas antigas e silenciosas eu me perdi. Desconforto que não me ocorria desde a infância, quando aos cinco anos de idade me vi sozinha numa loja de departamento. Dessa vez, a distração veio da luz. Feito sereia que canta no fundo do mar, me seduziu. Pedi pra Isolda parar o carro assim que avistei a motoneta azul em frente ao sobrado amarelo (o cartão postal alguns posts abaixo). A luz de outono no extremo sul da América Latina é de intensidade mágica. É limpa, reflete um tom levemente dourado. É leve, porém intesa. Um banquete para qualquer fotógrafo - até os que seguem com xeretas ficam fascinados. Cliquei mais uma casa a frente, outra e outra. Fui seguindo lentamente. Até que o cartão de fotos chegou ao fim. Hora de sair do transe. Parei. Puxei uma respiração leve, ainda em ar de contemplação. Que maravilha conhecer Colonia del Sacramento. Exclamação. Alguns segundos passaram, quando me dei conta, olhei pra trás: não estava mais no mesmo lugar. Pior: não consegui avistar o carro nem meus companheiros de viagem. Me perdi. Nada que voltar ao ponto inicial não resolva, pensei comigo mesma. Segui as imaginárias migalhas de pão deixadas no caminho e, ainda sim, não me encontrei. Continuava perdida, nos confis do Uruguay sem documento, sem dinheiro, sem casaco. Apenas com a máquina (sem espaço para mais fotos) na mão. Numa situação assim, qual seria o plano? Não me cabe mais chorar até que mamãe apareça. E mamãe não vai mesmo aparecer - está a milhares de quilômetros, em Salvador, sem nem saber o que passa. Devo sair a procura ou fixar num ponto para não desencontrar? Encostei num árvore, numa esquina onde era possível avistar outras quatro ruas e esperei. Passaram 15 minutos, 30, 40, uma hora. Três e quarenta e cinco da tarde. O sol começou a ir embora. Supliquei pelo meu casaco e cachecol que ficaram no banco do carro. Resmunguei. Meus dedos começaram a não querer dobrar. Saí em busca de uma lojinha ou cafeteria aberta, onde fosse possível me aquecer. Não encontrei. E se tivesse encontrado não teria dinheiro para tragar algo quente. Voltei à árvore na esquina, meu único apóio naquele lugar. Uma hora e vinte, e trinta e quase duas horas perdida em Colonia. Cada vez mais frio, o belo começou a ficar estranho. Tremiliques no corpo, esfrega as mãos. Põe no bolso, esfrega de novo. Não adianta. As unhas começam a ficar levemente roxas. O que vou fazer? Cadê esse povo? Onde se meteram? Ou seria: onde me meti? Por que não estão aqui. Ou: por que não estou lá com eles nesse lugar onde não sei chegar? Puxei uma respiração funda, daquelas que evocam força e concentração, e antes que o ar começasse a ser expelido pelas minhas narinas, o esmo foi suspenso pelo ronco de um carro. Era uma viatura da polícia local de apóio a turistas. Um jovem simpático e educadíssimo policial uruguaio (não poderia ser diferente) me perguntou, em espanhol, porque estava parada no frio, sozinha. Respondi que não conseguia encontrar meus amigos e ele lançou uma outra pergunta que me deixou reflexiva por longos segundos: mas você está perdida ou foi deixada aqui? Ainda não tinha pensado nessa segunda opção. Franzi a testa, pequenos fragmentos dos últimos dias pularam rapidamente na minha mente. Foi o suficiente para me encher de certeza. Imediatamente desfiz a preocupação: não, eles devem estar tão aflitos quanto eu. Fui convidada a entrar no carro para me aquecer, enquanto dava uma volta a procura dos meus amigos. Aceitei aliviada, sem a mínima preocupação. No Brasil, eu temeria se um policial me oferecesse o carro como abrigo. Em Angola, um policial sequer me convidaria - e ainda me pediria uma gasosa. Realmente ali dentro estava muito mais confortável. O jovem policial perguntou amenidades sobre o Brasil, como se tentasse pôr fim a minha nítida preocupação. E funcionou. Ele me convenceu de que a cidade era pequena, não demoraria a encontrá-los. Demos uma volta, duas, três e lá estavam eles nitidamente inquietos e preocupados, sentados na parte externa de um restaurante ao lado do forte. Rosana soltou os ombros, como quem alcança terra firme, após enfrentar uma longa tormenta no mar. Já não seria necessário levar a minha família uma notícia trágica: finalmente eu estava ali. Isolda estacionou a camionete e veio falar comigo assim que me afastei do mico. Ele, de óculos escuros, com minha chompa de alpaca boliviana nas mãos, engoliu a saliva que acumulava seca na boca e abriu um sorriso. Bebi todo tannat que restava na garrafa. Vesti o abrigo e o corpo logo voltou a temperatura normal. Pedi uma massa e, diferente da reação furiosa que acomete mães com tapas e puxões de orelha, que na verdade não passa de uma manifestação de alívio ao encontrar a cria perdida, ganhei beijos e carinho dos três que me esperavam. Foi o sorrentino al sugo mais gostoso que já comi na minha vida.



>fotos © 2009 Tássia Novaes
> encerrada a série "Pequena jóia: Outono no Uruguay"

4 comentários:

Carla Arend disse...

fiquei 6 dias em colonia, vivendo com turistas em um hostel... montamos um quebracabeças gigante da última foto, com a lamparina amarela.

:)
lindo!

tássia disse...

aiiiiiiiiii que maravilha, menina Arend! :)

Colonia é o máximo, né? Aliás, mais perto de onde vc tá que Montevideo.

Me mostra uma foto do quebra-cabeça :)

Beijos!
Proteja-se da porcina ;)

Unknown disse...

Ainda bem que foi no Uruguai .. Em Luanda vc ia voltar de Kandonga pro Bambi! huahauhauahuahauhauahuaa Beijo

tássia disse...

Luanda, kandonga, bambi...
dá até frio na espinha ouvir essas palavras, rsrs.

Gasosa, madrinha. Gasosa.
Amiiiiggaaaaaaaaaaa! :P
heehhehehe.
Cada uma....